quarta-feira, fevereiro 21, 2007

A Morte e as Mortes

O assunto é realmente delicado e difícil, mais complicado ainda porque nele fala-se muito.

Mas diz-se pouco. O discurso é, via de regra, o mesmo. O que torna tudo ainda mais complexo.

Fala-se muito, diz-se pouco, no que há aí um silêncio gritante, ensurdecedor.

A morte do menino foi bárbara, chocante, lamentável, tudo de ruim, nem mil adjetivos sintetizam. Tocou uma considerável parcela da sociedade brasileira. E esse já é um primeiro ponto: será que podemos dizer que essa morte chocou a todos da mesma forma?

Eu poderia ter posto uma interrogação após o "todos", mas preferi ser otimista.

Mortes bárbaras. Vou assumir o risco de uma comparação. Há alguns meses atrás, um ônibus pegou fogo com várias pessoas dentro, que morreram carbonizadas. Houve comoção, mas não como agora.

Dessa vez foi uma criança. Branca e bonita. Não era pobre. Será que isso tem influência nessa comoção toda?

Paro para pensar. Será que no caso do ônibus incendiado não houve mesmo tanta comoção como agora? Ou será que foram outras parcelas sociais que se comoveram? Ou será que aquela comoção não foi tão propagada quanto essa?

Essas perguntas são respondíveis assim?

Pertinentes elas são, se quisermos analisar para onde nossas comoções estão nos levando. E de que lugares elas partem, onde são produzidas.

Pensar nas determinações dessas comoções implica, necessariamente, em pensar a produção dessas mortes.

Lá vou eu me arriscar de novo. Pelo que se fala, não foram assassinatos premeditados, mas dois, digamos, com o perdão da indelicadeza da expressão, “acidentes de percurso”, em atividades reconhecida e sabidamente perigosas – incendiar ônibus e roubar carros com pessoas dentro.

O que eu quero dizer é que acidentes não acontecem por acaso. Se cada vez mais tem gente incendiando ônibus e roubando carros, esses acidentes tendem a aumentar. É lógico. Beira o estatístico. E é preciso um pouco de sangue frio para levar isso em consideração.

Mortes bárbaras. É também lógico supor que tem muita morte bárbara acontecendo por aí e ninguém se comove? Já ouvi histórias muito terríveis sobre torturas seguidas de morte que acontecem, apenas para citar um exemplo, nos porões da indústria do tráfico de drogas do Rio de Janeiro (isso para não citar outras indústrias - ou outras torturas).

Mas ninguém se comove com essas histórias? As pessoas próximas, as testemunhas imediatas, essas pessoas se comovem, e muito. A questão é: por que estas comoções não se propagam?

Comoção, propagação, muito, pouco, barulho, silêncio. A questão distributiva. As intensidades.

Há uma algazarra histérica. E esse barulho todo, produzido por poucos, que esmaga o silêncio subjacente, produzido por muitos, é genocida. E suicida.


quinta-feira, fevereiro 01, 2007

Eu gosto de sofrer. Será?

Minha teoria é a seguinte: eu gosto de sofrer.

Porque ter que me aborrecer, nessa altura do campeonato, vendo Jornal da Globo, é muita vontade de sofrer. Porque diabos estava eu vendo a Rede Globo a esta hora da noite?

O fato é que eu vi, está visto, eu já me aborreci, agora tenho que escrever sobre isso. Sorte (para os leitores) que quase ninguém lê o que eu escrevo mesmo.

Vamos lá: o Governo, finalmente, decidiu fazer as contas da previdência de uma forma honesta, correta. E é correta, basicamente, por três motivos, dois técnicos e um nem tanto.

  1. Qualquer idiota que já tenha visto um orçamento sabe que a "renúncia de receita" é uma despesa para fins de contabilidade. Quando o Governo concedia insenções diversas sobre as contribuições previdenciárias, que não tinham nada a ver com a política da previdência social, como as isenções do SIMPLES (regime de tributação simplicada para micro e pequenas empresas), das instituições educacionais que participam do PROUNI (política de educação), ele contabilizava essa "renúncia de receita" como "despesa previdenciária". Minha pergunta: isso é despesa previdenciária? Não. Então o suposto "rombo" da previdência diminui uns 18 bilhões, se você contabiliza direito, como vai fazer o Governo agora.
  2. Quem já teve a oportunidade de ler nossa Constituição sabe, também, que a previdência social é um dos pilares de um tripé, a Seguridade Social. Os outros dois são a Saúde e a Assistência Social. A Previdência Social é contributiva, a Assistência Social não. Nossa constituição, de forma mais do que justa, deu o direito de aposentadoria a milhões de trabalhadores rurais que nunca haviam contribuído para a previdência, basicamente para que eles não morressem de fome, e para reparar uma injustiça, já que esses trabalhadores deram sua contribuição à sociedade com seu trabalho, e não tiveram acesso a uma sistema de seguridade social. É política social. É assistência social. Deve entrar nas contas do déficit da previdência? Não. O suposto rombo diminui mais uns 20 bilhões, se você contabilizar corretamente. Dos 42 bilhões alardeados, ficam 4 bilhões.
  3. Agora o motivo "não-técnico", porque político. Trata-se de fazer a contabilização correta, não para fingir que não existe déficit na conta do Tesouro Nacional, mas justamente para sublinhar que é um déficit na conta do Tesouro, não nas contas da Previdência simplesmente. Trata-se de modificar os termo da discussão, para que os "cabeças de planilha" (bela expressão de Luís Nassif) tenham, pelo menos, que enfrentar a contra-argumentação de que não é vilipendiando os direitos sociais (principalmente através de uma manipulação contábil) que os problemas do país serão resolvidos. Os conservadores, quando Lula disse que quer crescer com democracia e justiça, logo se atiçaram e pensaram que era um recado para o Chávez. Nonada, como diria Riobaldo. É uma alusão ao crescimento da China e da Índia, otários.

Decisão louvável a do Governo. E eu, vendo o Jornal da Globo noticiar a decisão... preciso dizer o que encontrei? Uma avalanche de pseudo-economistas desancando a medida, os âncoras ouriçadíssimos, com aquelas caras de "sabedoria", levantando a bola para um economista-chefe-genérico cortar.

Duas frases e uma tabela chamaram a minha atenção.

As frases:

  • "Os economistas dizem..."
  • "...esse truque contábil..."

A primeira, dita pelo repórter que fez a matéria, denuncia o modus operandi desse tipo de veículo, e demanda a pergunta: onde diabos estão os muitos economistas que "não dizem" o que a Globo quer ouvir? Porque eles não foram ouvidos?

A segunda frase, dita pela âncora gordinha cujo nome não me recordo, durante a discussão com o "especialista", denuncia outra faceta desse tipo de manipulação: inverte-se a notícia, para dar-lhe outro sentido. Ora bolas, o que o Governo fez foi decretar o fim de um truque contábil.

Mas o mais impressionante foi a tabela...

Depois de demonstrar, por A + B, que a medida não faria diferença nenhuma, e decretar - de forma primária - que a contabilização deve ser: qualquer aposentadoria menos arrecadação só de contribuições - depois disso, o especialista-economista-chefe-de-tigela, Sardenberg se não me engano, apresentou aos espectadores uma tabela, que comparava o gasto de EUA, Alemanha, Brasil e Argentina, em porcentagem do PIB, com previdência, com o percentual de idosos desses países, em relação à população total. Genial, não?

Não me lembro os números da Argentina, já estava irritado. Mas os outros são os seguintes, aproximadamente:

  • Brasil: 12% do PIB de gastos e 6% de população idosa
  • EUA: 6% do PIB de gastos e 14% de população idosa
  • Alemanha: 12% do PIB e 19% de população idosa

Como gasta este Brasil, Sardenberg!

Mas qual o PIB e população desses países mesmo? Isso não vinha na tabela. Aí está (dados de 2005):

  • Brasil: o PIB é de mais ou menos 650 bilhões de dólares; população de uns 185 milhões
  • EUA: PIB de mais ou menos 13 trilhões; população de uns 300 milhões
  • Alemanha: PIB de uns 2 trilhões e 850 bilhões; população, uns 82 milhões

Isso significa o seguinte (se tomassemos como informação verdadeira - não é - que todos os idosos de um país recebem aposentadoria, e que todas as aposentadorias são para idosos; e se tomarmos os dados como verdadeiros):

  • O Brasil gasta, aproximadamente, 7000 dólares por cabeça de véio por ano
  • Os EUA, 19.000
  • Alemanha, 21.000

Truque contábil?

Vamos supor que o cabeça-de-planilha estivesse, com essa informação, supondo razoável que o Brasil gastasse com previdência a mesma proporção (%PIB/%Idosos) que esses dois países. Teríamos o seguinte:

  • Se a comparação for com os EUA, o Brasil só deveria gastar uns 3% do PIB, ou seja, os velhinhos iriam ganhar, em média, uns 140 dólares por mês. Marajás!
  • Se for com a Alemanha a comparação, o Brasil deveria gastar mais, uns 4% do PIB. A média subiria para 200 dólares. Será possível tanta mamata?

A pergunta que não quer calar: Sardenberg aceitaria receber essa aposentadoria? Quanto deve custar aquela gravata?