quarta-feira, abril 12, 2006

Mudando um pouco de assunto (ou não)

Reproduzo aqui um texto de Marcelo Freixo, para a Folha de São Paulo, sobre a questão do tráfico de drogas nas favelas do Rio de Janeiro. Quem tem um horizonte de vida mais amplo do que a vista de um apartamento de luxo na Avenida Atlântica, saberá ouvir o que este excelente texto diz; quem já teve contanto com algum - mínimo que seja - fragmento de realidade dessa nossa cidade não pode deixar de se impressionar com a objetividade propriamente dialética do texto.

Tráfico nada tem de revolucionário
MARCELO FREIXO ESPECIAL PARA A FOLHA

O tráfico é uma empresa capitalista das mais eficientes e completamente adaptada à realidade neoliberal que se instalou no Brasil na década de 90. É uma empresa concentradora de renda, altamente lucrativa, que utiliza mão-de-obra barata.
É uma empresa que se estabeleceu num espaço onde ela não tem nenhuma preocupação com exigências legais ou cobranças de impostos. É uma empresa com forte produção de alienação do trabalho, onde a mão-de-obra não tem a menor idéia do quanto rende a empresa. E o efeito social disso é terrível.
Você tem uma juventude que está completamente perdida, sem nenhuma expectativa de futuro, que segura em armas e que tem toda uma ilusão fortíssima de poder. Porque esse poder existe, mas é um poder local, limitado e finito. O futuro dessa garotada que está no tráfico não tem jeito: ou é a morte ou é a cadeia.
Não tem nada de revolucionário ou transformador no tráfico. Além de ter essas características capitalistas, ele é absolutamente opressor e se estabelece na favela através da construção de uma política de terror, onde jovens pobres matam jovens esfarrapados diante de facções que representam o que a opinião pública entende por crime organizado.
O crime é muito organizado no Brasil. É tão organizado que a sua real organização não é visível. O que boa parte da imprensa e da opinião pública entende como crime organizado é exatamente onde ele não se organiza - nos setores mais pobres, onde o que existe é o ponto final de um investimento absolutamente hierárquico, lucrativo e desigual.
O tráfico está entre os três comércios mais lucrativos do mundo. Se você entra em uma favela, vai ver muita arma, muita droga e muita miséria. Tem alguma coisa errada nesse elo. O dinheiro não fica ali. E aí entra toda uma hierarquia onde as investigações nunca chegam, porque também não interessa. A lógica da segurança pública construída no nível federal e estadual é a da repressão, ponto final.
Porque, na verdade, a repressão não é à empresa capitalista. É ao setor pobre da sociedade. Caso existisse algum interesse em combater o tráfico se trabalharia muito menos com repressão e muito mais com inteligência - o caminho da droga, da arma, os fornecedores, uma integração dos governos.
Quem chamamos de grandes traficantes são pessoas que, na maioria das vezes, nunca saíram da favela. São pessoas que não têm acesso à internet, que não sabem onde ficam a Colômbia ou a Bolívia, que só conhecem as vielas daquele grupo que controla com arma. Conheço boa parte dos chamados grandes traficantes que estão presos, por trabalhar muitos anos nos presídios, e eles são pessoas que têm baixíssima escolaridade e não teriam a menor condição de estar à frente de um negócio sofisticado como é o comércio internacional de drogas. Numa escala de um a dez na hierarquia do controle do tráfico, eles não chegam a dois. E a gente insiste em achar que, combatendo esses setores, combate o tráfico. Existe um problema maior. O tráfico tem que ser entendido dentro da lógica de exclusão social, que é muito profunda. O processo de exclusão é geográfico, é cultural, é ideológico.
Um programa de segurança tem que partir do princípio de se garantir segurança aos moradores da favela, combater o tráfico e não permitir que ele entre lá. Porque a principal vítima disso é o morador da favela. Não é a classe média. Quem perde seus filhos para o tráfico, seja pelo consumo ou pela morte, são os moradores. O que mais impressiona no Rio de Janeiro, ao contrário do que se imagina, é o quanto a violência não cresce mais do que ela já existe. Porque é muito impressionante você entrar em uma favela do Rio e ver que menos de 1% daquela garotada se envolve no tráfico. Como é que tão poucos entram, diante de tanta exclusão? A Rocinha tem 180 mil moradores e você não tem 70 pessoas envolvidas no tráfico. Mas se você sair às ruas e perguntar qual o percentual de moradores das favelas envolvido com o crime, você vai ouvir que todos, ou uns 80% estão no crime.
Há um processo consolidado ideologicamente de criminalização da pobreza. Isso legitima toda essa lógica de segurança pública que opera exclusivamentena repressão e no controle aos guetos. E é ineficaz.
Marcelo Freixo, 39, é professor de História e pesquisador da ONG Justiça Global.

sexta-feira, abril 07, 2006

Quem te viu, quem te vê FHC

Uma pérola. Noite de insônia vagando pela internet. Achei, por acaso, um texto da então ombudsman da Folha, Renata Lo Prete, da semana em que o jornal divulgou as gravações que confirmaram o favorecimento ao Opportunity na privatização das Teles. Além de lembrar o episódio, o texto tem a serventia de nos brindar com a seguinte trecho:

"No "Globo" de quinta-feira, FHC se mostrava preocupado com o "tipo de jornalismo" que resultou na reportagem sobre seu envolvimento no leilão das teles. Segundo o jornal, o presidente disse que o modelo serve apenas à "competitividade da notícia", e ameaça "arrastar as instituições a uma vulnerabilidade perigosa"."

Quem te viu e quem te vê! Segue a íntegra do texto.


"Não tenha dúvida"

São Paulo, domingo, 30 de maio de 1999

RENATA LO PRETE

Desde o caso das pesquisas eleitorais do ano passado a ombudsman não recebia tantas manifestações a respeito de um único assunto. Até a noite de sexta-feira, 51 leitores me procuraram para falar sobre a reportagem que revelou o mais completo bastidor da privatização do sistema Telebrás. Por diferença de 43 a 8, a maioria condenou a Folha pela divulgação, na terça-feira, das conversas captadas por grampo telefônico no BNDES. Recorre à ombudsman, normalmente, quem discorda do jornal (ao "Painel do Leitor" chegaram mais mensagens de apoio do que reclamações). Ainda assim, o placar é bastante expressivo. Às pessoas que pediram minha posição, tenho a dizer que considero a reportagem correta e importante. A Folha fez o que devia ao publicá-la. "Infantil", "maldosa", "leviana", "nojenta" e "retrógrada" foram alguns dos termos empregados por leitores. Com mais frequência apareceu "sensacionalista", palavra que vem sendo esvaziada de sentido pelo uso indiscriminado. Adjetivos à parte, três acusações lideraram os protestos.
1. "Nada de novo foi trazido à tona pela Folha." É a teoria do "café requentado". Acontece que há novidade. O material apurado pelos jornalistas Fernando Rodrigues e Elvira Lobato mostra, pela primeira vez, que o presidente da República não apenas sabia da ação de subordinados para favorecer um dos consórcios no leilão, como autorizou que seu nome fosse usado para esse fim. Além disso, as 46 fitas obtidas pela Folha deixam claro que o "café" anteriormente servido - a parcela dos diálogos vazada em novembro passado - foi preparado de maneira a livrar Fernando Henrique Cardoso de embaraços. O que um leitor chamou de "apenas algumas conversas do presidente" faz toda a diferença. Tanto o governo sabe disso que tratou de promover a mais coordenada e instantânea "operação abafa" de seus quatro anos e meio de vida. Poucas vezes informação dessa envergadura minguou tão rapidamente no noticiário.
2. "Podemos comparar a Folha a um receptor de mercadoria roubada, por ter publicado transcrições de escutas ilegais." Grampo é crime. Como tal, tem de ser apurado e punido. Isso não exclui o fato de que o jornal, uma vez ciente do conteúdo das gravações e de sua autenticidade, tem o dever de revelar a porção que não diz respeito à vida pessoal dos grampeados, mas sim ao trato da coisa pública. Como subproduto da crítica à divulgação das fitas, leitores perguntaram "a quem interessa" seu vazamento. Embora não determine se a notícia deve ou não ser publicada, a questão é legítima e, a meu ver, ainda não foi devidamente respondida pela Folha. Concentrado no teor dos diálogos, o jornal até agora pouco fez para interpretar as disputas que estão por trás do calendário dos vazamentos para a imprensa. Da mesma forma, não tem dado a atenção devida ao desenrolar das investigações sobre a autoria da escuta. Nesse aspecto, o avanço mais significativo dos últimos dias partiu do "Correio Braziliense", que revelou a existência de um outro grampo, este autorizado pela Justiça, feito pela Polícia Federal para chegar ao responsável pelas gravações no BNDES. Ao longo da semana, cresceram os sinais de que o grampo nasceu dentro do governo. As deficiências têm de ser sanadas, sob pena de a Folha deixar a impressão de que faz vista grossa à ilegalidade e ao jogo de interesses que lhe garantiram o furo.
3. "É princípio básico da imparcialidade ouvir os dois lados." Leitores condenaram o jornal por não ter trazido, na própria terça-feira, a posição do Palácio do Planalto sobre a conversa em que FHC libera o então presidente do BNDES, André Lara Resende, para usar seu nome na operação que visava fortalecer o consórcio liderado pelo banco Opportunity na disputa pela Tele Norte Leste. A secretária de Redação, Eleonora de Lucena, responde com três argumentos:
a) devido à importância do material, a Folha buscou preservar sua exclusividade;
b) a versão do governo sobre a venda da estatal, que já era conhecida, foi registrada no sobretítulo e nas primeiras linhas do texto da manchete;
c) nas edições subsequentes, o jornal deu amplo espaço (duas manchetes incluídas) às manifestações oficiais.
O primeiro item é ponderável. Os dois últimos, verdadeiros. Mas, no que se refere ao princípio, os leitores têm um ponto. E, dada a extensividade das transcrições, é pouco provável que um telefonema para a assessoria do presidente, na noite de segunda-feira, tivesse resultado em clones da reportagem no dia seguinte. Enquanto as mensagens que resumi acima questionavam procedimentos jornalísticos, outras poderiam ser condensadas em três palavras: "não quero saber", seja porque "a Bolsa vai cair", seja porque "não aguento mais notícia ruim". Entre os leitores que elogiaram a reportagem, um pediu que o jornal não silencie diante da reação do governo: "Espero que as tentativas de desqualificar o serviço prestado pela Folha não fiquem sem resposta." Outro criticou a repercussão do caso em outros veículos: "A maioria fez assessoria de imprensa". No "Globo" de quinta-feira, FHC se mostrava preocupado com o "tipo de jornalismo" que resultou na reportagem sobre seu envolvimento no leilão das teles. Segundo o jornal, o presidente disse que o modelo serve apenas à "competitividade da notícia", e ameaça "arrastar as instituições a uma vulnerabilidade perigosa". A Folha merece crítica da ombudsman por muita coisa, mas não está errado o tipo de jornalismo que foi praticado nesse episódio. Como disse FHC para André Lara Resende, "não tenha dúvida": esse pseudodebate é alimentado na tentativa de encobrir a verdadeira discussão que teria de ser feita.
Recordemos.