terça-feira, outubro 31, 2006

A próxima luta

Acabaram as eleições. Vencemos. E agora?

É a mesma pergunta de 2002 e, para mim, tem a mesma resposta: não esperemos coisas mirabolantes. Lembremos que psicanalisar, educar e governar são tarefas impossíveis, e que por isso mesmo devemos tratar de cumpri-las, avançando nas brechas, tratando de construir a possibilidade do impossível.

Nem preciso dizer que não sou da turma que ficou decepcionada com o governo de Lula. Quem esperava grandes transformações a partir de 2003 era, no mínimo, ingênuo, e ingenuidade não é coisa que podemos nos dar ao luxo de ter nessas questões.

Agora podemos colocar a cabeça no lugar e desanuviar nossos comentários, deslocando-nos da questão eleitoral e político-institucional, que como bem lembrou grande amigo, é por demais obsessiva em seu exercício discursivo – acredito que era uma tarefa que tínhamos que cumprir, correndo o risco de sermos repetitivos, chatos, superficiais até. Havia muita coisa em jogo.

A reiterada crítica ao papel da mídia nessas eleições fazia parte desse jogo; a partir de agora, nesse campo, temos que cobrar algo mais substancial, mais importante: a democratização efetiva, na medida do possível, das esferas de exercício do poder e, em especial, do poder da palavra. Democratização da cultura, tema espinhoso, democratização dos meios de comunicação de massa, democratização das instâncias de poder que decidem as políticas públicas, os recursos e – por que não? – o aprofundamento da democratização da pobreza material, a distribuição mais justa dessa pobreza.

Passamos por um processo interessante no Brasil, independentemente de seu resultado: a elite burguesa (por que usar outro nome?) não conseguiu impedir que Lula fosse conduzido novamente ao centro do poder de Estado. Isso não é pouco, e devemos cobrar que o fato seja levado em conta na definição das políticas desse nosso segundo governo.

A esquerda está, a meu ver, preparada para cobrar e para compreender as dificuldades, as impossibilidades, para ser "realista".

Vamos ver o que conseguiremos fazer até 2010. E nesse processo, não podemos esquecer as batalhas travadas fora do âmbito do Estado, aqui, nas nossas atuações concretas, nos nossos embates. O exercício da política não é apenas o exercício do poder estatal – bem sabemos que o Estado moderno nasce como braço de legitimação do poder do Capital. Nosso envolvimento, nessas eleições e em outras, partem do pressuposto de que devemos, também, disputar as posições de poder de Estado, e que isso não é mero detalhe – há possibilidades concretas de avanço nesse sentido, bastando dizer que, depois de quatro anos, 40 milhões de pessoas comem melhor. Isso não é pouco. Um processo de transformação é um processo de transformação, e ponto. Processo.

Continuemos a luta, nos consultórios, hospitais, orquestras, escolas, empresas, maracanãs, bares, construções - na rua! - e, se me permitem dizer, também na internet. E lembremos de cobrar de Lula o que ele pode nos dar, e de criticá-lo quando fizer merda. Não podemos nos entorpecer com uma coisa ou outra – esse é o nosso compromisso.

quinta-feira, outubro 05, 2006

Por Uma Análise Política da Corrupção

(escrito antes do primeiro turno das eleições)

Muito bem assinalava um companheiro de trabalho quando estudávamos juntos O Capital, de Karl Marx: “É um livro sobre política”. O conceito de mais-valia, elaborado a partir da análise histórica do valor das mercadorias, é eminentemente político: não se trata de um roubo, mas do grau de exploração do trabalhador por parte do capitalista, que não é um ladrão, mas uma marionete do capital. Marx, com isso, não deixa espaços para moralismos em sua análise da luta de classes.

Podemos transportar esse ponto para uma reflexão sobre o tema da corrupção, tão caro a nós brasileiros em nossa história. Caro, principalmente, pela maneira como geralmente é tratado.

Toda corrupção é política. A despeito disso, há os que se preocupam em fazer uma análise moral desse tema, a qual não deixa, também, de fazer parte de uma estratégia política, ainda que inconsciente. Nesse terreiro, há um embate nítido entre dois discursos amplamente antagônicos em suas práxis: o da moralização da política e o da politização da moral.

Tentemos definir corrupção. A corrupção pode ser, simplesmente, um mecanismo de desvio de dinheiro público para enriquecimento privado. Não se trata de um simples roubo, é preciso ressaltar, mas da privatização discricionária de recursos coletivos. Privatização que, geralmente, compensa com sobras o custo político de sua operação, ainda que seja deflagrada, denunciada.

A corrupção pode ser, mais especificamente, uma estratégia de cooptação: não apenas uma mera compra de mercenários, mas parte de uma coligação política, não necessariamente partidária. Lembremos que toda aliança política tem seu custo e que todo valor de troca tem seu preço, ainda que nem sempre possa ser monetarizável. Quando mais se usa o expediente da corrupção como estratégia política, podemos deduzir que as condições políticas de manobra são mais escassas.

Nesta análise, importa pouco o estatuto jurídico desse “desvio”. A lei jurídica não é um ente divino, mas também uma estratégia política.

O discurso pela moralização da política tem caráter higienista. É preciso limpar o mar de lama. Os ladrões imorais precisam ser execrados. Não há proposta de mudança estrutural, mas de aumento irrestrito da fiscalização e da vigilância. Prega-se, e o verbo aqui é o mais adequado, o aperfeiçoamento idealizado da sociedade disciplinar. Prescreve-se, no nível macro, a moralização de todos os indivíduos.

O discurso da politização da moral é eminentemente histórico. Ao contrário do histrionismo dogmático de seu antagonista, ele busca localizar as origens da corrupção na seqüência histórica do país. Busca apontar os interesses de classe que estruturam essa corrupção, sem isentá-los de seus custos políticos, ampliando a fundamental problematização sobre a oposição público/privado.

Trata-se de uma disputa por hegemonia, na qual fica claro onde está sendo construída a viabilidade política de se reduzir a corrupção a níveis mínimos, irrelevantes. Mas isso não interessa a todos, obviamente. Há sujeitos aderindo em ambos os lados. No atual momento histórico do nosso país, muitos posicionamentos, até então velados, estão vindo à tona.

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Crise política no Brasil (só aqui?) não é exceção, é regra. Poucos são os períodos históricos neste país quando houve relativa estabilidade político-governamental. Mas acabamos de passar por uma crise política bastante singular, tendo em vista que envolveu um ator político que até então nunca havia avançado até a trincheira do executivo federal: o Partido dos Trabalhadores.

Neste presente setembro de 2006, não dá para falar de política sem se falar de eleições. E abro um parêntesis para definir o que é eleitoreiro, em termos políticos: uma estratégia, e não, como muitos beatos propagam, um defeito moral. Do ponto de vista da política, não podemos julgar a priori manobras eleitoreiras, já que uma eleição não é um acontecimento de importância qualquer.

Alguns colegas próximos gostaram de me cutucar, dizendo que o Lula havia cometido um ato falho no Jornal Nacional, durante a entrevista com os candidatos, ao dizer que era preciso “combater a ética”. Não vi a tal entrevista e não avalio tal declaração como um ato falho clássico (o das oposições diretas), mas como um posicionamento discursivo importante, como se nosso presidente dissesse: “Não podemos analisar a corrupção através do ponto de vista de uma ética abstrata, supostamente neutra, que prega a total erradicação dos desvios”. Em outras palavras, mais diretas: “Precisamos combater a ética moralista e hipócrita do PSDB, do PFL e de seus correligionários”. Lula não conseguiu completar a frase, e teve que arcar com o custo da gafe, provavelmente pequeno. Faz parte. Não se pode dizer tudo.

Miremos um pouco nos outros candidatos. A coligação discursiva entre PSDB e P-SOL, representados por Geraldo Alckmin e Heloísa Helena, está cada vez mais clara. Chega a ser gritante, passando a um ponto em que todas as pesquisas de opinião, sem exceção, das mais confiáveis às mais duvidosas, indicam que Alckmin e Helena disputam o mesmo eleitorado. Ambos vociferam ao propor a moralização plena dos políticos. Querem perseguir os ladrões, os traidores. Encaram política como se fosse uma velha e remoída questão de honra. Desprezam as condições políticas do país e lavam suas mãos diante da construção de uma efetiva alternativa à esquerda que está sendo empunhada pelo governo Lula e apoiada pela população, não sem distorções. Com muita sensibilidade, percebeu Miguel do Rosário certa feita em seu blog Óleo do Diabo, ao sinalizar que os projetos de esquerda deste século não se baseiam mais em promessas, mas em resultados. E não são consolidados em um processo higiênico, perfeito, cheiroso e com talquinho.

Não é por acaso que acabo de ler, na imprensa cibernética (IG), um comentário de Alckmin a respeito de uma frase de Lula. Falou o presidente: “Democracia não é só coisa limpa não. Democracia às vezes tem dessas coisas que nos causam preocupação, que nos causam desgosto, mas nós temos que saber enfrentar porque vamos derrotá-los não é batendo boca com eles não”. Comenta então o tucano, em tom eliminatório, caçador, genocida, de chacina, além de deturpador: "Vi o presidente declarar que democracia não é coisa limpa. Quem pensa dessa forma não deveria fazer política". E FHC completou, em recente declaração, ao afirmar que Alckmin tem “as virtudes morais” que Lula não possui.

O mesmo colega de trabalho que citei no início deste texto é hoje filiado ao P-SOL. Acho que está muito equivocado, mas continuo nutrindo por ele um grande carinho. Recordo-me, entretanto, de uma colocação sua enquanto estudávamos juntos: que Marx superava a oposição entre hegelianos de esquerda e de direita sendo um kantiano de esquerda. Discordo diametralmente. Não podemos idealizar Marx, nem qualquer projeto de socialismo, sob o risco de estragá-lo, de levá-lo a fatigantes fracassos.

Isso tudo me leva a uma bela frase de Bertolt Brecht, que pode muito bem aqui ser transposta, retirada da peça Vida de Galileu:

“A causa principal da pobreza, em ciência, é a riqueza presumida. A finalidade da ciência não é abrir a porta ao saber infinito. Mas colocar um limite à infinitude do erro”.

Acho que, na política, o negócio também vai por aí.