Chave de Palavra
O começo é difícil em qualquer ciência, testemunha Marx logo no ínicio d’ O Capital. Às vezes, iniciar um texto também é. Quero escrever sobre a montagem, que assisti há algumas semanas, de uma peça do Brecht, O Círculo de Giz Caucasiano, pela Companhia do Latão, que estava em cartaz aqui no CCBB do Rio.
Vou começar por uma pequena experiência que fiz, não sem efeitos, em relação ao texto, que não conhecia. Durante a semana, comecei a lê-lo, e me vi diante de uma peça bastante difícil, com muitas cenas e personagens, ao largo das seis unidades que a compõem. Fiquei imaginando: como é que os caras vão fazer isso tudo? Como vão encenar? Eu também não conhecia a companhia, então fiquei fantasiando sobre todas as inúmeras mudanças de ambiente que o texto trazia: um prólogo numa aldeia da União Soviética, um golpe de estado num palácio, uma fuga por montanhas geladas, um hotel, uma ponte, uma casa nas montanhas, o gelo derretendo, um rio, um tribunal... E os cenários? E o figurino?
Não dá pra pensar numa montagem dessa peça que seja uma superprodução hollywoodiana. No entanto, não dá pra garantir que, qualquer dia desses, algum desses diretores ultrabadalados não vá resolver montar um Círculo de Giz nos moldes de um Titanic. Nenhuma obra é absolutamente inapropriável, mas, nesse caso, é muito improvável. Brecht e Broadway não casam. Um dos dois engole o outro, é oito ou oitenta.
Mas O Círculo de Giz não deixa de ser, num outro sentido, uma superprodução. Além disso, foi exibido em um disputadíssimo palco, o do CCBB, onde o espaço não é dos maiores. A complexidade da peça leva forçosamente a um puta trabalho na concepção da montagem, uma grande elaboração de seus aspectos formais. E Brecht, com o perdão do trocadilho, não dá brecha: o próprio texto nos indica que tudo deverá ser feito com não muitos atores, já que o Círculo de Giz é uma peça encenada pelos aldeões de um dos colcoses do prólogo, que certamente não poderiam formar um elenco com toda sua comunidade e precisariam se revezar em vários personagens.
Daí o que poderia parecer contraditório: os textos de Brecht, em geral, exigem superproduções, ainda mais quando conjugados com música. E aponto aqui como era complicado, lendo o texto, imaginar como a música entrava na montagem. As indicações de canções são muitas, sem sugestão escrita de melodia. Fiquei pensando no grande desafio que seria compor músicas, arranjos com montagens.
Eu ia começar este texto com a seguinte frase, mas parece que ela entra melhor agora: montagens de Brecht vêm sendo raras nos últimos anos. E não sem determinações históricas: O Círculo de Giz nos apresenta uma abrangência temática exuberante - material farto, trabalhado com suor. Não há ponto sem nó, o cara não gastou tinta à toa. É preciso muito peito e muita raça para levar a peça adiante, sem deixar cair a peteca. E como é impressionante exigência que o texto faz do trabalho dos atores, na dinâmica da transmutação, muitas vezes repentina, em personagens amplamente diferentes, e por pouco tempo.
Como eu dizia no início, li grande parte da peça durante aquela semana, na expectativa de chegar ao teatro com certo conhecimento do texto. Aconteceu que não consegui, justamente, ler o que seria o desfecho do espetáculo, de modo que sabia a história toda, menos o final. Parece que isso contribuiu demais para que eu me emocionasse muito enquanto o assistia. É muito bonito o amor da personagem por aquele menino e a forma como ela o demonstra, amor que nasceu de maneira tão tórrida, a partir de um momento extremamente agudo de miséria.
E é claro que o texto escrito não estava todo lá. Tudo bem, mas senti a falta do deboche que Brecht faz dos médicos, em dois momentos diferentes, de forma rápida e sutil. Foram suprimidos, no que resulta, certamente, alguma perda. Talvez não por acaso, uma hora meus olhos bateram no encarte, durante o intervalo, onde estava transcrita uma entrevista com o próprio Brecht, comentando sobre supressões na montagem que dirigira em Berlim, no ano de 1954. Disse ele: “Quando se corta algo, tem-se que entregar algumas coisas. Ali se tem uma certa perda, é verdade. Não se pode comer o bolo e guardá-lo. É claro que se tem que cortar algo. Em todas as coisas não se podem estabelecer princípios rígidos. Não é verdade que as pessoas vêm ao teatro por causa do teatro, na realidade é o contrário. Temos que pensar sempre que as pessoas tiveram um pesado dia de trabalho. Só quando tivermos uma jornada de trabalho mais curta – por exemplo, 6 ou 4 horas – estaremos em condições de ver peças mais longas. As peças não respeitam muito isto e exigem muito de pessoas que estão cansadas”. Brecht falou, mas continuei achando que aqueles diálogos fizeram muita falta. De qualquer maneira, quanto pano pra manga há nessa declaração, a respeito da arte e de sua publicação (preciso voltar a esse ponto crucial mais tarde).
Em muitos momentos, fiquei pensando na entrevista que vi, ainda antes de assistir À montagem, do diretor Sérgio de Carvalho, concedida a Globo News. A repórter não conseguiu deixar de perguntar: “Você não acha que a peça de Brecht é anacrônica?”. Ah, como dá vontade de sair xingando essa mulher, mas sei que não é por aí. Ô mulher babaca, coitada, robotizada pelo discurso dos patrões, na pregação do ‘fim da história’. Assim como a grande maioria dos que costumam escrever e falar sobre teatro e aproveitam para taxar Brecht de desatualizado, como se esse negócio de luta de classes fosse um papo que remetesse especificamente a alguma ‘moda’ do século passado. E como se fosse impossível que o povo pudesse ser representado em obras de arte, que assim nada teriam a ver com as condições sociais e os modos econômicos de produção.
Encerrada a montagem, os atores vieram se despedir do público e estavam também largamente emocionados, alguns às lágrimas. A troca que houve entre eles e a platéia foi baseada numa fortíssima transferência. Não por acaso, o ‘palco’ era muitíssimo próximo das cadeiras, de forma que as expressões eram muito intensamente sentidas, por ambos os lados. Obviamente, não sei se foi assim nos outros dias, os públicos mudam, os próprios atores também têm todo o direito de não fazer apresentações excepcionais em todas as vezes. E foi de uma delicadeza tamanha quando os atores anunciaram que estariam jantando em um determinado restaurante – o desejo de ouvir aqueles que acabaram de assisti-los.
Quando a personagem Grusche acaba de sair, em fuga, de uma estalagem, no meio da peça, um criado de lá lhe dá o seguinte conselho: “Quando chegares na encruzilhada, vire à esquerda”. No texto que li, era à direita que ele sugeria. A Companhia modificou uma palavra aparentemente sem importância, de acordo com o próprio caminho que escolheu, nesta atual encruzilhada da história. Passo a bola para Pablo Neruda:
“Há outros dias que não têm chegado ainda,
que estão fazendo-se
como o pão ou as cadeiras ou o produto
das farmácias ou das oficinas
– há fábricas de dias que virão –
existem artesão da alma
que levantam e pesam e preparam
certos dias amargos ou preciosos
que de repente chegam à porta
para premiar-nos com uma laranja
ou assassinar-nos de imediato.”
Vou começar por uma pequena experiência que fiz, não sem efeitos, em relação ao texto, que não conhecia. Durante a semana, comecei a lê-lo, e me vi diante de uma peça bastante difícil, com muitas cenas e personagens, ao largo das seis unidades que a compõem. Fiquei imaginando: como é que os caras vão fazer isso tudo? Como vão encenar? Eu também não conhecia a companhia, então fiquei fantasiando sobre todas as inúmeras mudanças de ambiente que o texto trazia: um prólogo numa aldeia da União Soviética, um golpe de estado num palácio, uma fuga por montanhas geladas, um hotel, uma ponte, uma casa nas montanhas, o gelo derretendo, um rio, um tribunal... E os cenários? E o figurino?
Não dá pra pensar numa montagem dessa peça que seja uma superprodução hollywoodiana. No entanto, não dá pra garantir que, qualquer dia desses, algum desses diretores ultrabadalados não vá resolver montar um Círculo de Giz nos moldes de um Titanic. Nenhuma obra é absolutamente inapropriável, mas, nesse caso, é muito improvável. Brecht e Broadway não casam. Um dos dois engole o outro, é oito ou oitenta.
Mas O Círculo de Giz não deixa de ser, num outro sentido, uma superprodução. Além disso, foi exibido em um disputadíssimo palco, o do CCBB, onde o espaço não é dos maiores. A complexidade da peça leva forçosamente a um puta trabalho na concepção da montagem, uma grande elaboração de seus aspectos formais. E Brecht, com o perdão do trocadilho, não dá brecha: o próprio texto nos indica que tudo deverá ser feito com não muitos atores, já que o Círculo de Giz é uma peça encenada pelos aldeões de um dos colcoses do prólogo, que certamente não poderiam formar um elenco com toda sua comunidade e precisariam se revezar em vários personagens.
Daí o que poderia parecer contraditório: os textos de Brecht, em geral, exigem superproduções, ainda mais quando conjugados com música. E aponto aqui como era complicado, lendo o texto, imaginar como a música entrava na montagem. As indicações de canções são muitas, sem sugestão escrita de melodia. Fiquei pensando no grande desafio que seria compor músicas, arranjos com montagens.
Eu ia começar este texto com a seguinte frase, mas parece que ela entra melhor agora: montagens de Brecht vêm sendo raras nos últimos anos. E não sem determinações históricas: O Círculo de Giz nos apresenta uma abrangência temática exuberante - material farto, trabalhado com suor. Não há ponto sem nó, o cara não gastou tinta à toa. É preciso muito peito e muita raça para levar a peça adiante, sem deixar cair a peteca. E como é impressionante exigência que o texto faz do trabalho dos atores, na dinâmica da transmutação, muitas vezes repentina, em personagens amplamente diferentes, e por pouco tempo.
Como eu dizia no início, li grande parte da peça durante aquela semana, na expectativa de chegar ao teatro com certo conhecimento do texto. Aconteceu que não consegui, justamente, ler o que seria o desfecho do espetáculo, de modo que sabia a história toda, menos o final. Parece que isso contribuiu demais para que eu me emocionasse muito enquanto o assistia. É muito bonito o amor da personagem por aquele menino e a forma como ela o demonstra, amor que nasceu de maneira tão tórrida, a partir de um momento extremamente agudo de miséria.
E é claro que o texto escrito não estava todo lá. Tudo bem, mas senti a falta do deboche que Brecht faz dos médicos, em dois momentos diferentes, de forma rápida e sutil. Foram suprimidos, no que resulta, certamente, alguma perda. Talvez não por acaso, uma hora meus olhos bateram no encarte, durante o intervalo, onde estava transcrita uma entrevista com o próprio Brecht, comentando sobre supressões na montagem que dirigira em Berlim, no ano de 1954. Disse ele: “Quando se corta algo, tem-se que entregar algumas coisas. Ali se tem uma certa perda, é verdade. Não se pode comer o bolo e guardá-lo. É claro que se tem que cortar algo. Em todas as coisas não se podem estabelecer princípios rígidos. Não é verdade que as pessoas vêm ao teatro por causa do teatro, na realidade é o contrário. Temos que pensar sempre que as pessoas tiveram um pesado dia de trabalho. Só quando tivermos uma jornada de trabalho mais curta – por exemplo, 6 ou 4 horas – estaremos em condições de ver peças mais longas. As peças não respeitam muito isto e exigem muito de pessoas que estão cansadas”. Brecht falou, mas continuei achando que aqueles diálogos fizeram muita falta. De qualquer maneira, quanto pano pra manga há nessa declaração, a respeito da arte e de sua publicação (preciso voltar a esse ponto crucial mais tarde).
Em muitos momentos, fiquei pensando na entrevista que vi, ainda antes de assistir À montagem, do diretor Sérgio de Carvalho, concedida a Globo News. A repórter não conseguiu deixar de perguntar: “Você não acha que a peça de Brecht é anacrônica?”. Ah, como dá vontade de sair xingando essa mulher, mas sei que não é por aí. Ô mulher babaca, coitada, robotizada pelo discurso dos patrões, na pregação do ‘fim da história’. Assim como a grande maioria dos que costumam escrever e falar sobre teatro e aproveitam para taxar Brecht de desatualizado, como se esse negócio de luta de classes fosse um papo que remetesse especificamente a alguma ‘moda’ do século passado. E como se fosse impossível que o povo pudesse ser representado em obras de arte, que assim nada teriam a ver com as condições sociais e os modos econômicos de produção.
Encerrada a montagem, os atores vieram se despedir do público e estavam também largamente emocionados, alguns às lágrimas. A troca que houve entre eles e a platéia foi baseada numa fortíssima transferência. Não por acaso, o ‘palco’ era muitíssimo próximo das cadeiras, de forma que as expressões eram muito intensamente sentidas, por ambos os lados. Obviamente, não sei se foi assim nos outros dias, os públicos mudam, os próprios atores também têm todo o direito de não fazer apresentações excepcionais em todas as vezes. E foi de uma delicadeza tamanha quando os atores anunciaram que estariam jantando em um determinado restaurante – o desejo de ouvir aqueles que acabaram de assisti-los.
Quando a personagem Grusche acaba de sair, em fuga, de uma estalagem, no meio da peça, um criado de lá lhe dá o seguinte conselho: “Quando chegares na encruzilhada, vire à esquerda”. No texto que li, era à direita que ele sugeria. A Companhia modificou uma palavra aparentemente sem importância, de acordo com o próprio caminho que escolheu, nesta atual encruzilhada da história. Passo a bola para Pablo Neruda:
“Há outros dias que não têm chegado ainda,
que estão fazendo-se
como o pão ou as cadeiras ou o produto
das farmácias ou das oficinas
– há fábricas de dias que virão –
existem artesão da alma
que levantam e pesam e preparam
certos dias amargos ou preciosos
que de repente chegam à porta
para premiar-nos com uma laranja
ou assassinar-nos de imediato.”
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